O silêncio acordou-me.
O silêncio matinal sussurrou-me ao ouvido que algo não estava bem. O silêncio manteve-me semi-acordada, naquele estado dormente entre os dois mundos separados por uma ténue linha, entre o despertar e o dormir mais uns minutos, só mais uns minutos. Mas o silêncio invadia o meu quarto e fez-me ficar inquieta até me levantar ainda antes das 8h da manhã. A vida lá fora parecia estranha... Os barulhos matinais que invariavelmente povoam a rua e o café simplesmente não existiam. Pouco depois das 8h recebo um telefonema a dizer que tinham assassinado um candidato às presidenciais. Oh não! Outra vez... Não ouvi barulhos de tiros nem bombas durante mais uma noite de assassínios. Não me levantei da cama num salto ao ouvir uma explosão na rua de trás, como aconteceu em Novembro e Março. Desta vez não acordei com o som inequívoco de tiros e explosões. Acordei com o silêncio que invadiu as ruas de Bissau nas primeiras horas da manhã. Poucas horas depois já eram duas as vítimas das movimentações da noite. Em seguida já eram quatro mortos e pouco depois eram cinco, mas afinal o quinto não morreu, foi detido. O dia foi passando e a cidade retomou a sua "normalidade". A maioria das lojas e mercados estavam a funcionar normalmente, mas as escolas estavam desertas. Os professores que apareceram disseram que não estavam em condições psicológicas para leccionar. Os guineenses encaram mais um dia que amanhece com sangue com o mesmo espírito de esperança que os faz levantar todos os outros dias. A imagem que guardo destes dias pós-assassínios é marcada pelos rádios com a antena esticada e colados ao ouvido, à espera das notícias mais recentes.
Os dias que se seguiram foram marcados por uma calma aparente à qual não me consigo habituar. Aparentemente está tudo normal, tudo calmo, há poucos militares pelas ruas e os professores retomaram as suas funções nas escolas. Não há, por agora, razões para alarmismos. Nós, estrangeiros, não somos o alvo e isso faz-me sentir mais segura, mas não deixo de me sentir apreensiva por todos aqueles que pertencem a esta terra e que já viram demasiados anos de guerras e conflitos. Nestes dias e nos outros também, percebo o porquê de estar aqui e de aqui querer continuar, até ter algo de positivo a dar e também a receber.
Em termos de trabalho, os assassínios da madrugada de 6ª feira fizeram com que fosse cancelada a pintura do mural da Escola Limpa no Estádio Lino Correia, que estava marcada para sábado de manhã. O muro tem 50 metros de comprimento e estavam envolvidas cerca de 50 crianças e jovens e também alguns colaboradores e professores. Se eu acreditasse em coincidências, diria que foi coincidência ter chovido na madrugada do dia das pinturas, o que nos iria fazer cancelar a pintura no próprio dia. Assim, com tiros e chuva, o muro continua branquinho e arranjadinho à espera das tintas que lhe vão dar vida no dia 14, "se Deus quiser", como disseram os alunos que marcaram presença às 8h da manhã e a quem entregámos um "kit de suborno" para não se esquecerem da nova data. De carderno na mão, lápis, borracha e régua, cada um afastou-se da parede que continua despida de cor... Por pouco tempo!